Se as máquinas estiverem certas, o homo ruralis talvez seja uma espécie em extinção. Parte dela atravessa agora mesmo as rodagens montanhosas dos canaviais de Pernambuco, uma terra doce para os pés e para a vista, e isso talvez encerre a doçura de cada dia, onde tudo, homem e terra e luta encontrem seu limite. A espécie vária e invisível, às vezes é mais ruralis que homo: quando é a própria natureza: terra e cana. E, às vezes, o contrário: quando é própria a cultura: facão, machina, ou ela mesma máquina, engenho, espécie e espécime de naturalização da violência, na qual a exuberância da paisagem é uma metonímia da devastação do homem e da terra, onde o trabalho recebe outros nomes. O dia a dia dessa “família” nada traz do épico da exploração dos navegantes, dos descobridores; nem do lúdico dos viajantes nem do lírico dos turistas. O homo ruralis é essencialmente sua luta trágica, entendido que a grande tragédia de cada um é não poder alterar o seu [próprio, impróprio?] destino.
O homo ruralis, daqui, cortando a Zona da Mata de Pernambuco, é o trabalhador da cana, como os lavradores do pintor pernambucano Cícero Dias ou do pintor paulista Cândido Portinari, porque a cana de açúcar transformou esse homem em ave migratória, também, gênero de ave na contramão, ou contra-asa, do espírito das aves, que é a de, a cada segundo, ir perdendo seu voo, contrariando sua natureza. Esse rural, tipo de Vulcano saído do inferno das queimadas, carrega ainda no seu destino uma velha forma de escravidão, os rostos que o passado escurece e esconde, por mais aparências de moderno que o capitalismo promova, desde os tempos em que as usinas consumiam gentes, essas máquinas vulgares de plantar, colher, adubar, até os novíssimos tempos da vã tecnologia, o deus ex machina do lucro, da peleja do capital com o trabalho.
Dessa espécie, sua língua é facão. Sua linguagem é lâmina. E o verbo mais carne pronunciado entre eles é cortar, cortar, cortar, cortar, cortar. Sangrar, outro verbo seu, vegetal, rural. Cortar e sangrar, num trabalho que a cultura naturalizou no corte da cana, que é parte negação da vida, da lavra, da terra, para quem trabalha nela. E essa terra, diferente do que pensa o retirante, não é fácil de amansar, nem é tampouco feminina, ou não diferente lhe seja, sua feição severina, o mesmo gosto, a terra íntima, como diz João Cabral de Melo Neto: “...e entre a Caatinga e aqui a Mata/ a diferença é a mais mínima. / Está apenas em que a terra / é por aqui mais macia;/ está apenas no pavio,/ ou melhor, na lamparina:/ pois é igual o querosene/ que em toda parte ilumina,/ e quer nesta terra gorda/ quer na serra, de caliça,/ a vida arde sempre com/ a mesma chama mortiça".
E onde estão esses espécimes, de dia feitos de aço, de faca, e nunca de poesia, e para os quais a rima claudica? Por onde andará a gente que tantas canas cultiva? Diferente do teu poema, João, de tantas, são in(di)visíveis: a trabalhar todas as horas do dia, os dias todos do mês, os meses todos da vida.
Envelhecendo já aos vinte, a saber da morte em vida, vida em morte, Severina.