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OS (COM)PASSOS DE

 JOÃOMIGUEL :

UMA POÉTICA DO TEMPO

O preto e o branco. O espelho que mostra e oculta apenas a metade do rosto de um homem. O tamanho da imagem é pequeno. Exibe a testa. Limpa. A cabeça descoberta. Compõe uma simetria visual com o homem de meio corpo, de perfil, rosto inteiro, cabeça coberta. Entre as duas figuras humanas, a pura geometria da cruz, a fé, sobre-humana. Dentro, a habitação que se move. Fora, a casa, imóvel. O gris é o cimento de ambas as paisagens.

No ônibus cheio de homens e seus meios de transporte e trabalho e demais pertences, os rostos de olhares perdidos ou cabisbaixos. Esses homens num ônibus são uma pequena obra-prima do olhar fotográfico. Do retrato. Do coletivo. Do individual.

Há um diálogo imprevisto das máquinas e maquinismos fotografados por Joãomiguel, como esta da cena citada agora, com os poucos mecanismos das imagens de Francisco Baccaro. O vapor-vivo. O metal pintado. A água oculta. A aridez da cal. Os instrumentos. A hidráulica. Ponteiros. Poeira e verde, palha. O equilíbrio, com as formas quase esquadrinhadas em algum tipo de métrica. Chapéus e bonés. Soberanos. Em ambos os fotógrafos.

Mas em Joãomiguel a poética é do tempo, seu instrumento é o compasso. Em Francisco Baccaro é a dança, em Joãomiguel é a música. Ambos cadenciados. Vejam esses homens de cabeças cobertas protegendo-se do fogo do sol. São cinzas caminhando sobre cinzas. Tão cortados como a cana que cortaram ou que cortarão. Cada um com o seu matulão. Indiferentes ao destino que os capturou, ou de uma câmera que insiste em captá-los. Não todos. Um deles nota(-se) consciente, flagra o flagrante, e olha fixo quem o fita, como a uma cana-fita. Ninguém, porém, se fixa.

Vejam o pequeno exército dos que andam numa mesma direção, suas indumentárias, seus corpos, suas botas de todos, as facas de alguns bem à mostra. Poderiam ser armas, mas são apenas instrumentos de trabalho. Talvez houvesse que perguntar como na canção de Sérgio Godinho: “que força é essa/ que trazes nos braços/ que só te serve para obedecer/ que só te manda obedecer./ Que força é essa, amigo,/ que força é essa, amigo/ que te põe de bem com os outros/ e de mal contigo”.

Nas fotografias de Joãomiguel há uma curiosa simetria: os homens, suas roupas, seus apetrechos, suas máquinas, suas paisagens. Prescindem propositadamente da cor. Sua narrativa, porém, não é estacionária como a fotografia dos primeiros tempos. Move-se com a mesma força da terra. É a presença-consciência humana que se escancara. Uma consciência-presença que fosse emanando como um punhal dos olhos de suas personas. Mesmo as abstrações parecem construir figuras e humanizar-se. Neste ponto, lembram, mas por contraste, e numa perspectiva às avessas, o tratamento da mesma temática dos trabalhadores da cana sob o olhar de Francisco Baccaro. Neste as figuras humanas muitas vezes se ocultam ou se disfarçam, como véus e máscaras, para que o estético se sobreponha ao antropológico. As figuras se dissolvem ou animam metamorfoses até à abstração, e ele exibe o exato instante em que isso acontece.

Como para desmentir isto que afirmamos sobre a valorização extrema da figura humana em Joãomiguel, ele apresenta uma fotografia em que, do alto, a paisagem compõe seus labirintos, seus caminhos, como pura abstração. Mas mesmo nessa imagem é possível ver a analogia do seu humanismo pulsando: as linhas, as artérias, as fendas e os descaminhos, como a falar, em silêncio, de nossa fragilidade, das nossas imperfeições, e que a simetria é somente um sonho da imaginação do olhar. Que os claros e escuros não apenas os inventamos, estão aí diante dos olhos, para quem quiser, para quem puder: (somente) vir e ver.

 

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